Infância e maturidade

INFÂNCIA E MATURIDADE

Sempre fui inconscientemente aquela que se identificava mais com as brincadeiras de crianças com idade abaixo da minha. Era muito mais divertido e, naquele meio, eu conseguia de alguma forma me sentir um pouco parecida, com gestos, gostos, me era confortável. Os menores aprovavam a minha presença e ali me sentia feliz, pertencente. 

Porém, aos olhos dos adultos, eu estava no local errado e em um grupo errado, foi ficando muito mais evidente conforme minha idade avançava. As cobranças atribuídas a mim eram muito maiores, e sempre ouvia as frases: precisa amadurecer, fique próximo às crianças da sua idade… Os olhares acusadores me repreendendo quando, em algum momento, eu ousasse ser “criança”. 

Por outro lado, os da minha idade não faziam parte do meu mundo, ou na verdade era o oposto: minha fala desconexa, meus rompantes devido a algo que me deixava frustrada, pular e bater palmas quando estava alegre, não conseguir contar um acontecimento sem me perder no meio da história, andar sempre com minha boneca… 

E quando ao brincar ter padrões, tudo isso me fazia ser aquela do “meio”: se não sou do grupo dos pequenos, pois lá não me cabe mais, e não sou do grupo dos maiores, de qual eu sou? Eu queria muito poder pertencer. A falta do diagnóstico me tirou a compreensão das pessoas ao meu redor, me trouxe muitas noites sem dormir, me tirou grande parte da minha felicidade e quase minha vida. 

Após o diagnóstico sempre digo que minha vida mudou completamente, não significa que tudo virou um conto de fadas (até porque eu detesto conto de fadas), mas foi muito difícil, dolorido, principalmente para mim e minha mãe. Ela foi sempre a minha apoiadora e, após o meu diagnóstico, uso o termo: virou uma verdadeira mãe “leoa”. 

Em um determinado dia, eu já cansada dos julgamentos devido ao fato de eu sair sempre com minha boneca no alto dos meus quinze anos, perguntei a minha mãe se valeria a pena continuar e, ao ver meus olhos cabisbaixos e tristes por isso, minha mãe me disse: “nunca se importe com o que os outros pensem, ou falem, se você se sente segura e feliz é o que importa.”  

Com o decorrer dos anos, me desapeguei por conta própria de levar minha boneca ao sair, mas levei e levo pra minha vida a frase da minha mãe. Minha primeira amizade com pessoas da minha idade veio no segundo ano do ensino médio, pois nessa escola eu tive todo o acolhimento e respeito com minha individualidade, que eu acredito que todo atípico deve ter. Eu já não acreditava mais que eu poderia ter amigos, ainda mais sendo eu mesma e digo que a sensação é indescritível, eles riam comigo da minha falta de compreensão de metáforas e afins, mas não riam de mim, uma grande diferença, aprendi muito. 

Incluir um amigo vai além de muitas coisas de teorias. Citarei relatos meus: no contra turno que fazia assistência de redação, um colega de classe ao perceber muitas vezes minha inquietude por algum motivo, ele logo me sentava no chão ao seu lado, colocava um lado do fone no ouvido dele e outro no meu, e assim colocava música para ouvirmos, sem trocarmos uma palavra até me acalmar. Música sempre me acalmou. O texto? A aula? Era óbvio que não fazíamos, mas dá para entender a grandiosidade desse gesto? 

Há outros exemplos parecidos como: eu tinha sempre um único trajeto que passava pela escola, e o pátio é imenso, mas devido minha rigidez era sempre no mesmo local e, assim começaram a me levar por trajetos diferentes vez ou outra dizendo que precisavam de algo. Eu queria ser boa amiga e ia. Eles sempre acabavam depois me mimando um pouco com doces.  

Um outro fato de se sentir parte de um grupo é nem sempre precisar estar conversando com todos. Você pode estar calado. mas se sentindo bem e acolhido. Muitas vezes eu só ficava próxima, mas em nenhum momento me senti excluída. Em um dia extremamente especial para mim — e foram muitos, é claro — mas esse foi um dos primeiros e me impactou bastante positivamente. Teríamos uma gincana e todos preparados para levar apitos e vuvuzelas. Eu estava morrendo de medo de como seria devido a minha hipersensibilidade auditiva, porém fizeram um grupo, me adicionaram e pediram para eu falar tudo que me incomodava, que eles não iriam levar porque queria minha presença e que eu estivesse feliz. Nesse período, mal sabia eu que ter conquistado amigos, ter uma escola que era como família, iria ser a minha estabilidade emocional. 

Estava no terceiro ano do ensino médio, minha mãe já apresentava sintomas que estava adoecendo, era ela que me levava diariamente as terapias e precisou parar. A falta das terapias, e ver minha mãe adoecer foi desencadeando crises, que já não eram tão constantes mais. Na escola, todos já sabiam como era, e também como lidar comigo nessas situações. Até que um dia após a aula minha mãe passou muito mal e achei que ela morreria na minha frente, foi assustador! Meu padrasto chamou ambulância e a levaram ao hospital, eu estava com muito medo, mas naquele dia eu tive que ser forte pelo meu irmão, estava no papel de irmã mais velha. Minha mãe me ligou do hospital que ficaria internada para exames. 

Precisei fazer atividades que ainda não tinha como responsabilidades antes e, por telefone, minha mãe me explicava como ligar a máquina de lavar e assim por diante. E, em um dia de visita do hospital minha mãe passou mal novamente, e eu só imaginava como seria minha vida se a perdesse. Ela é como um porto seguro para mim, temos uma ligação muito forte. 

Era semana de provas, não conseguia estudar e tudo me irritava. Achei que na escola me afastar seria a solução, e em um dia que eu já havia chorado muito, estava sentada isolada de todos. Com o rosto entre os braços, senti meus amigos se sentarem ao meu lado e ficarem calados por um momento. Depois, falavam coisas aleatórias para me ver sorrir. Nesse dia percebi o que era amizade. 

No segundo trimestre do terceiro ano, fiz equipe com uma amiga que foi essencial para mim.  Naquele momento, eu estava com crises de ansiedade, pânico e minhas sensibilidades aumentaram muito devido a todo meu emocional sobrecarregado. Teve dia, inclusive, de eu ter crise tão forte de até bater na minha cabeça (coisas que eu não fazia), mas era meu ápice. 

O que eu posso dizer é que, se não fosse a ajuda da pedagoga da escola, minhas terapeutas e essas pessoas que, pela primeira vez, pude chamar de amigos, eu não sei se teria conseguido. Se vocês me perguntarem hoje se a amizade permanece após não estar mais junto deles, eu digo que permanece no coração e nas boas memórias. E sei que, se algum dia precisarem de mim ou eu deles, estaremos lá. Eu não sou uma pessoa que mantém contato e eles me entendem, sabem que o carinho, respeito e afeto que sinto vão além de mensagens diárias de bom dia.